Os Estados Unidos afirmam ter atingido nesta sexta-feira (3/10) um barco em águas internacionais na costa da Venezuela, matando quatro pessoas.
Este é o quarto ataque do tipo, em que o governo americano alega ter como alvo o "narcotráfico".
Na quinta-feira (2/10), um memorando vazado enviado ao Congresso americano – e divulgado pela imprensa local – revelou que o governo americano decidiu que está em um "conflito armado não internacional" com cartéis de drogas.
Isso é significativo porque o governo dos EUA é obrigado por lei a informar o Congresso se usará as Forças Armadas, o que sugere que Washington pode estar planejando novas ações militares na região.O Secretário de Guerra americano, Pete Hegseth, disse que o navio atingido nesta sexta-feira transportava "quantidades substanciais de narcóticos" e que as pessoas a bordo seriam "narcoterroristas".
Os ataques americanos a embarcações no Caribe têm sido condenados por países como Venezuela e Colômbia, com alguns juristas internacionais descrevendo-os como uma violação do direito internacional.
O presidente americano Donald Trump disse que o navio continha "drogas suficientes para matar de 25 a 50 mil pessoas", mas os EUA não forneceram evidências para suas alegações nem informações sobre as identidades das pessoas a bordo.
Ataques anteriores a outras três embarcações já mataram 17 pessoas.
Os EUA enquadraram esses ataques como legítima defesa, apesar de muitos advogados questionarem a legalidade das ações.
Enquadrar os ataques como um conflito armado ativo é provavelmente uma maneira de Donald Trump justificar o uso de poderes mais extremos em tempos de guerra – por exemplo, matar "combatentes inimigos", mesmo que eles não representem uma ameaça violenta, ou deter pessoas por tempo indeterminado.
São poderes semelhantes aos aplicados à Al-Qaeda após o 11 de setembro.
Trump não apresentou o motivo pelo qual está categorizando o tráfico de drogas e crimes associados como um "ataque armado", nem nomeou quais cartéis ele acredita estarem atacando os EUA.
Ele já designou muitos cartéis, inclusive no México, Equador e Venezuela, como organizações terroristas – concedendo às autoridades americanas mais poderes em sua resposta a eles.
A declaração de 'conflito armado'
Na quinta-feira, Trump anunciou que os Estados Unidos estão envolvidos em um "conflito armado" com cartéis de drogas, que ele agora considera "combatentes legais", de acordo com um documento confidencial obtido pela imprensa.
O documento afirma que Trump considera os cartéis de drogas grupos armados não estatais e que suas ações equivalem a "um ataque armado contra os EUA".
"O presidente determinou que os Estados Unidos estão envolvidos em um conflito armado com essas organizações terroristas designadas", afirma o memorando, conforme relatado pela agência Reuters.
"O presidente instruiu o Departamento de Guerra a conduzir operações contra eles de acordo com a lei de conflitos armados", acrescenta o documento, usando o nome preferido de Trump para o Departamento de Defesa.
O texto parece ser uma justificativa para o uso da força contra cartéis de drogas, que o governo Donald Trump acusa de inundar as ruas dos Estados Unidos com cocaína e fentanil.
Na terça-feira (30/9), Trump afirmou que seu governo está considerando atacar as operações de cartéis de drogas "que chegam por terra" aos EUA vindos da Venezuela.
No último mês, os EUA realizaram uma grande operação militar no Caribe, perto da costa da Venezuela.
As autoridades americanas apresentaram a mobilização como uma ação antidrogas contra o Tren de Aragua, designado como "organização terrorista" pelo governo Trump em fevereiro, e o Cartel de los Soles, uma suposta organização de tráfico de drogas que, segundo Washington, envolveria oficiais de alta patente e ex-oficiais das Forças Armadas da Venezuela e seria liderada pelo presidente Nicolás Maduro.
O governo Maduro nega as acusações e acusa os EUA de usar a questão do tráfico de drogas como desculpa para pressionar por uma mudança de regime na Venezuela.
Dúvidas sobre a legalidade dos ataques
Os ataques dos Estados Unidos a embarcações no Caribe foram chocantes em sua escala e geraram críticas generalizadas.
De acordo com especialistas consultados pela BBC, eles podem ter violado o direito internacional.
Luke Moffett, professor da Queens University em Belfast e especialista em reparações, direitos humanos e direito internacional humanitário, disse à BBC Verify que "a força pode ser usada para parar uma embarcação, mas geralmente medidas não letais devem ser empregadas".
Em relação aos direitos humanos, Moffett observou que o uso da força pode constituir uma "execução arbitrária extrajudicial" e "uma violação fundamental dos direitos humanos".
De acordo com o jornal The New York Times, a decisão de Trump de designar formalmente sua campanha contra cartéis de drogas como um conflito armado ativo indica sua intenção de consolidar seu direito de obter poderes extraordinários em tempos de guerra.
De acordo com o direito internacional, durante um conflito armado, um país pode legalmente matar combatentes inimigos, mesmo quando eles não representam uma ameaça.
Mas persistem dúvidas sobre a legalidade dessa medida.
Geoffrey S. Corn, um procurador-geral aposentado que anteriormente foi conselheiro sênior do Exército, disse ao The New York Times que os cartéis de drogas não estavam envolvidos em "hostilidades" contra os Estados Unidos porque vender um produto perigoso é diferente de enfrentar um ataque armado.
Trump pode declarar PCC organização terrorista?
O memorando de Trump ao Congresso americano é de interesse do Brasil, pois especialistas em risco político avaliam que existe a possibilidade de o governo americano classificar facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) como organizações terroristas.
A medida pode ser adotada como parte das retaliações americanas pela condenação de Jair Bolsonaro (PL) por golpe de Estado, segundo um relatório publicado pela consultoria Eurasia no início de setembro.
Em entrevista à BBC News Brasil, o diretor-executivo para as Américas do grupo Eurasia, Christopher Garman, disse que a classificação do PCC e do CV como organizações terroristas não parece ser uma decisão iminente, mas pode ocorrer nos próximos meses.
"O desafio de quando você denomina PCC e CV como organização terrorista é que tem que identificar quais grupos estão ajudando essas organizações. E, dado o tamanho, a sofisticação e a entrada desses grupos no setor privado, não é fácil", observou Garman.
"Se estendermos o horizonte nos próximos seis a oito meses, acho que a probabilidade aumenta", afirmou.
Tido como a maior organização criminosa do país, o PCC é suspeito de estar envolvido na recente onda de adulteração de bebidas por metanol, além de estar por trás do assassinato a tiros, em 15 de setembro, do ex-delegado-geral de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, em Praia Grande, na Baixada Santista.
O governo Trump já inclui em sua lista de organizações terroristas outros grupos criminosos latino-americanos, como o venezuelano Tren de Aragua e seis cartéis mexicanos.
Garman, da Eurasia, salientou que o governo Trump está muito focado no combate ao narcotráfico na região, um tema que também é relevante para fins eleitorais domésticos.
"A presença naval na costa da Venezuela é sinal disso", ressaltou.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticou em setembro o envio de forças militares americanas para o Mar do Caribe.
"[O terrorismo] não pode ser confundido com os desafios de segurança pública que muitos países enfrentam. São fenômenos distintos e que não devem servir de desculpa para intervenções à margem do direito internacional", disse o presidente brasileiro em reunião virtual entre líderes do grupo Brics no dia 8 de setembro.
"A presença de forças armadas da maior potência do mundo no Mar do Caribe é fator de tensão incompatível com a vocação pacífica da região", afirmou Lula.
Em caráter reservado, diplomatas mencionam o temor de que os Estados Unidos utilizem o combate ao narcotráfico e a classificação de grupos como terroristas para justificar operações militares na região.
Com informações da reportagem de Alessandra Corrêa, de Washington para a BBC News Brasil
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c62q15enp88o